2004-12-11 - Correio da Manhã
"Fui o primeiro a falar do sistema"
Retirado do futebol e profundamente desiludido com Pinto da Costa, o adjunto de Ivic na vitória do FC Porto, em 1987, na Taça Intercontinental, recorda as histórias que marcaram “uma equipa de heróis”. Mas, com o ‘Apito Dourado’ na berlinda, Octávio salienta que já denunciava situações menos claras do futebol português dez anos antes de Dias da Cunha falar no sistema.


Correio da Manhã – O que nunca vai esquecer do jogo de Tóquio de há 17 anos, que deu a Taça Intercontinental ao FC Porto?

Octávio Machado – É muito difícil transmitir aquilo que se viveu em Tóquio. Foram tempos de uma grande dedicação ao clube. Não vou esquecer aquele grupo, a sua capacidade de sacrifício e a paixão pelo clube que cada um demonstrava diariamente.

E que pequenos pormenores fixou?

– Vários. Das penosas deslocações do hotel para o treino, muito demoradas por causa do trânsito infernal, do esforço para adaptar os jogadores ao fuso horário em muito pouco tempo, da viagem de ida, do nervosismo que me fez esquecer bens valiosos na casa de banho e de como fiquei contente quando uma passageira mos devolveu.

Nunca passou pela cabeça dos técnicos interromper o jogo devido ao frio?

– Aquele grupo?! Aquela equipa era uma equipa de heróis. Gente que, em nome de uma instituição, viveu aqueles momentos com paixão, disponível para todos os sacrifícios. E não só naquele dia. Estamos a falar de toda uma época em que a equipa foi obrigada a jogar nas Antas em condições muito difíceis por causa do rebaixamento da relva. E acabámos com 15 pontos de avanço do segundo classificado.

E tem más recordações do jogo de Tóquio?

– Tenho. Na viagem de regresso, parámos na Suíça e foi aí que o presidente decidiu que a taça não seria apresentada aos adeptos nem pelos jogadores nem pela equipa técnica. O Estádio das Antas encheu, eu e alguns atletas, entre eles Fernando Gomes, fomos lá, mas não podemos levar a Taça.

Porquê?

– Basta lembrar que, nessa época, Ivic saiu do Estádio Nacional debaixo de uma vaia dos adeptos portistas, depois de ganhar a Taça de Portugal. Ele que serviu o FC Porto como ninguém.

Era uma estratégia do presidente?

– O presidente sempre tentou provar que as vitórias eram dele. É claro que nunca pude aceitar comportamentos que questionassem a dedicação e a paixão daquele grupo. Ivic foi embora, eu saí, Teles Roxo, um dos mais dedicados dirigentes do clube, abandonou, assim como Álvaro Braga. Não acham estranho? Isto tinha de ter um limite.

O FC Porto que joga amanhã em Tóquio está muito longe daquele que jogou há 17 anos?

– A minha última passagem pelo FC Porto foi uma desilusão. Recordo que, nessa altura, a equipa já não era campeã há dois anos e tinha falhado o acesso à Liga dos campeões. E isto porque os valores estavam perdidos. No FC Porto de hoje apenas reconheço Baía como grande referência do passado.

E o presidente?

– Posso dizer que conheci um presidente que se chamava Jorge Nuno e que me motivou pela palavra. E conheci, mais tarde, um presidente chamado Pinto da Costa que me decepcionou pela palavra.

Não coloca a hipótese de um dia fazerem as pazes?

– Quando uma pessoa jura pela filha e afinal está a mentir é difícil. Foi o que ele fez. Jurou-me pela filha que Mourinho não iria para o FC Porto e já tinha levantado a taça de champanhe com aquele treinador.

Ficou surpreendido com as evoluções do processo ‘Apito Dourado’?

– Eu, que ando há quarenta anos no futebol?! Fui a primeira pessoa a falar do sistema. Dez anos antes de Dias da Cunha o fazer. Pensa que alguma vez vou esquecer o que vivi antes do jogo Gil-Vicente-FC Porto na época de Carlos Alberto Silva. Foram os momentos mais traumatizantes da minha vida e da minha carreira. Esse jogo determinava a descida de divisão do Gil Vicente, treinado por António Oliveira, caso a equipa perdesse contra o FC Porto, na altura do jogo já campeão nacional.

Não esquece porquê?

– Porque tive de lutar para que mantivéssemos a nossa dignidade.

Sofreu pressões para que o FC Porto facilitasse a vida ao Gil Vicente?

– Num telefonema chegaram a dizer-me que eu era a única pessoa do FC Porto que desejava a vitória da equipa frente ao Gil Vicente.

Quem lhe telefonou?

– Um amigo. De facto, bem vi aqueles que foram ao balneário do Gil Vicente festejar a vitória da equipa. Perdemos por 1-0, mas não perdemos a dignidade porque não cedo a pressões e disse isso mesmo aos meus jogadores no fim do jogo.

Pinto da Costa deu-lhe a entender que o FC Porto devia facilitar?

– Nunca me diria isso porque me conhece.

Algum dirigente do FC Porto o fez?

– Há muitas maneiras de fazer pressão. Posso apenas dizer que vivi momentos muito difíceis, mas tenho que deixar alguma coisa para revelar no meu livro. Mas não foi a única vez que me aconteceu. Num jogo entre a Académica e o FC Porto em que se discutia a descida de divisão da Académica, também passei por situações difíceis. Acabamos por ganhar com um golo de Raudnei, infelizmente para alguns, porque não era suposto o FC Porto ter ganho esse jogo à Académia.

Em que época se passa esse segundo episódio?

– Quando Ivic era treinador do FC Porto.

O treinador da Académica era António Oliveira...

– Exactamente.

Foi pressionado, por duas vezes, para não prejudicar duas equipas, treinadas por António Oliveira?

– Vivi momentos muito difíceis.

PINTO DA COSTA PERMITIA DELANE

O parapsicólogo Delane Vieira diz que foi essencial na vitória há 17 anos.

– Na segunda refeição no hotel, em Tóquio, já Delane Vieira não teve a ousadia de sentar-se à mesa com o grupo. Até porque se ele se sentasse levantava-me eu.

Ele garante que previu a vitória da equipa e que ajudou mesmo a que nevasse...

– Pois, e eu estava farto dessas palhaçadas nem podia admitir que o trabalho de todos servisse para promover certas pessoas.

Mas ele trabalhava com o FC Porto...

– Pois trabalhava. E se o fazia é porque tinha cobertura. E se tentava desvalorizar o nosso trabalho é porque o presidente o permitia. De resto, na viagem de regresso ele foi queixar-se ao presidente porque estava a ser gozado pelos jogadores. Uma vez que ele disse que fez nevar, os jogadores diziam que, a partir dali, dispensavam os frigoríficos nas Antas porque Delano conseguia fazer gelo do nada. Foi-se queixar ao chefe como se tivessemos muito medo. Respeito sim, medo não.

Chegou a bater em Delane no Estádio do Bessa?

– Nem sei como é que ele não adivinhou isso.

"MOURINHO NÃO VIVEU FC PORTO COM PAIXÃO"

Mourinho diz sobre si que só tem currículo como adjunto.

– Como diz que não pertence à minha escola. É obvio que não. Formei-me na escola do pai dele, mas enquanto este ficou na quarta classe eu passei pelos melhores palcos europeus, excelentes universidades. Diz que nunca se cruzou comigo. Pois não. Como tradutor de Bobby Robson não terá vontade de lembrar os 3-0 no jogo da Supertaça, em Paris, nem a derrota na Taça de Portugal. Eticamente, sou melhor do que ele. Respeito os colegas como ele não faz. E tenho um passado enorme e grandioso como jogador uma vez que representei o meu país. Ele nunca o conseguiu. Por último, vivi o FC Porto com paixão e sentimento, coisa que ele nunca fez. Mas que seja feliz e dê continuidade à brilhante carreira.

A sua carreira como treinador acabou?

– Não sei. Nunca bati à porta de ninguém apesar de muitos terem batido à minha. E quem mais vezes o fez foi Pinto da Costa. Pelas posições que assumi em defesa das instituições onde trabalhei, tenho a consciência de que há muita gente com poder que não gosta de mim e muito menos do que eu digo.

Quando começa a escrever a autobiografia?

– Estava à espera que Pinto da Costa escrevesse o seu e o publicasse para começar. Vou ver se o leio e depois escreverei o meu. Modestamente, julgo que o meu testemunho será importante para contar às novas gerações o empenho e a dedicação de muitas pessoas que passaram por aquela casa.

PERFIL

Octávio Machado, presidente dos Bombeiros Voluntários de Palmela, apaixonado por vinhos e caça, começou a carreira como jogador, tendo representado o Palmelense, o V. Setúbal e o FC Porto.

Finda a carreira de jogador tornou-se técnico, tendo sido adjunto de Carlos Alberto Silva, Artur Jorge e Tomislav Ivic, no FC Porto, e de Waseige, no Sporting. Em 1996, assumiu o comando técnico dos ‘leões’. Já em 2001 rendeu Fernando Santos no FC Porto, mas meia época depois viu o seu lugar ser ocupado por José Mourinho.

Internacional em 25 ocasiões, Octávio tem no seu CV sete títulos nacionais, cinco Taças de Portugal, seis Supertaças, uma Liga dos Campeões, uma Supertaça Europeia e uma Taça Intercontinental.

Alexandra Tavares-Teles