Vender passes a investidores é tolerado pela FIFA mas proibido em Inglaterra
A partilha dos direitos económicos com investidores externos é prática comum na Argentina, Uruguai, Brasil e outros países sul-americanos. A maior parte dos clubes nestes países tem grandes limitações financeiras (muitos estão mesmo em situação de insolvência) e vê-se obrigada a recorrer com frequência a esta cedência total ou parcial dos passes dos jogadores. O fenómeno está agora a generalizar-se também entre os maiores clubes de Portugal. Na Europa, aliás, esta venda a terceiros tende a ser um fenómeno mais corrente nos países do Sul do continente. Na Inglaterra, por exemplo, este tipo de negócio começou por ser tolerado em determinadas condições, mas passou a estar totalmente proibido a partir de 2008.
A controvérsia desencadeada pelo chamado "Tévezgate" - a contratação de Tévez e Mascherano pelo West Ham, em Agosto de 2006 - levou a uma alteração radical do regulamento da Premier League relativamente a esta matéria. Os direitos económicos de Tévez eram detidos pelas empresas MSI e Just Sports Inc., enquanto o passe de Mascherano era repartido pela Mystere Services Ltd. e pela Global Soccer Agencies - quatro empresas de um universo misterioso controlado ou representado por Kia Joorabchian. O West Ham começou por esconder a existência destes "acordos de associação económica". O antigo artigo U18 do regulamento da liga inglesa não permitia que "entidades terceiras" pudessem ter qualquer "influência material sobre a política ou a actuação dos clubes". Nos termos do acordo assinado entre West Ham e Kia Joorabchian, o clube inglês não poderia opor-se a uma eventual decisão de venda dos jogadores argentinos (o West Ham também não teria qualquer palavra a dizer quanto ao preço de uma eventual transferência de Tévez ou Mascherano). A liga inglesa considerou que as empresas de Joorabchian detinham, desta forma, uma "influência material" (e ilegal) no poder decisório do clube. O West Ham conseguiu evitar as sanções desportivas (dedução de pontos, descida de divisão), mas foi condenado ao pagamento de uma multa recorde de 5,5 milhões de libras. O West Ham aguentou-se na divisão principal, mas não evitou ser processado pelo despromovido Sheffield United. Em Março de 2009, o clube de Londres aceitou pagar uma indemnização de 20 milhões de libras ao Sheffield.
A direcção da Premier League não gostou da confusão provocada pela intromissão destes investidores sem rosto que geralmente se escondem debaixo do manto protector e confidencial de empresas registadas em paraísos fiscais. Apesar dos esforços de Joorabchian e Zahavi, que tentaram convencer os britânicos sobre as virtudes do chamado "modelo sul-americano" (partilha do risco entre clube e investidores, provisão de talento futebolístico a clubes com limitações financeiras), a liga inglesa aprovou dois novos artigos (L34 e L35) do regulamento que passaram a proibir qualquer tipo de acordos de associação económica com terceiros a partir da época de 2008/09. A Premier League justificou a decisão com a "necessidade de protecção da integridade da prova e manutenção da confiança do público". Vários dirigentes da liga e da federação inglesa classificaram estas parcerias como "repugnantes" ou "pouco edificantes". "Estes negócios envolvem seres humanos e será muito desestabilizador ter 'outsiders' com interesses financeiros em determinados jogadores", comentou Gordon Taylor, presidente do sindicato de jogadores profissionais da Inglaterra e País de Gales.
Acordo Benfica/Jazzy em questão
Em 2008, a FIFA introduziu um artigo (18º bis) sobre esta matéria - intitulado "Influência de terceiros sobre os clubes" - no Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores: "Nenhum clube pode celebrar um contrato que permita a uma das partes ou a um terceiro adquirir a capacidade de influenciar a independência, a política ou o desempenho das suas equipas em matéria de trabalho ou de transferências." O novo articulado da federação internacional não vai tão longe quanto as normas inglesas. Ao contrário da Premier League, a FIFA não proíbe a alienação a terceiros de parte ou da totalidade do passe de jogadores - apenas restringe a influência que esses terceiros possam ter nos clubes. A parceria entre Benfica e Jazzy Limited (de Joorabchian e Zahavi) relativamente ao internacional brasileiro Ramires, por exemplo, poderia ser considerada irregular nos termos do Regulamento da FIFA já que o presidente Luís Filipe Vieira admitiu - em entrevista à Benfica TV, no dia 2 de Agosto - que a permanência do jogador "não depende exclusivamente do Benfica". "Temos um parceiro, somos credíveis e temos de respeitar os contratos", afirmou Vieira. Poderá concluir-se que a sociedade Jazzy Limited detinha, desta forma, uma "posição de influência" relativamente à independência e política de transferências do Benfica - uma circunstância que a FIFA quer banir do futebol.
"Acordos desviam dinheiro para fora do futebol"
David Dein, ex-CEO do Arsenal, antigo vice-presidente da federação inglesa e actual director da comissão de candidatura da Inglaterra ao Mundial 2018, é um dos mais ferozes opositores destes acordos de associação económica: "O facto de terceiros deterem parte ou a totalidade dos passes de jogadores desvia dinheiro para fora do futebol. Quando um clube compra um jogador de outro clube, o dinheiro permanece no sistema e circula dentro do futebol. Quando o passe é detido por terceiros, a venda de um jogador beneficia apenas indivíduos ou empresas. E quando o dinheiro é desviado para fora do futebol, os clubes ficam mais limitados em termos de evolução e de capacidade de investimento em jogadores, infra-estruturas e estádio. Além disso, esta prática reduz vários jogadores - sobretudo em África e na América do Sul - a uma posição de quase escravidão. E também origina problemas ao nível da integridade da competição, já que seria possível que em determinado encontro jogadores das duas equipas adversárias fossem detidos pela mesma entidade terceira."
O artigo 18º bis ("Influência de terceiros sobre os clubes") do Regulamento FIFA:
"1. Nenhum clube pode celebrar um contrato que permita a uma das partes ou a um terceiro adquirir a capacidade de influenciar a independência, a política ou o desempenho das suas equipas em matéria de trabalho ou de transferências.
2. A Comissão de Disciplina da FIFA pode impor sanções aos clubes que não respeitarem as obrigações estipuladas neste artigo."
Por Paulo Anunciação - O Jogo - 20/11/2010